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Os danos psicológicos gerados pela maior catástrofe socioambiental do RS

Resiliência é uma palavra-chave em relatórios climáticos globais. No sentido figurado, o termo se refere à
capacidade de lidar com situações adversas e de superar mudanças e desafios impostos. Desde 27 de abril de 2024, a catástrofe socioambiental, que atingiu 97% do Rio Grande do Sul, exige dos gaúchos esta habilidade.

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O que aconteceu com o Rio Grande do Sul?

De acordo com o boletim da Defesa Civil Estadual de 1º de julho, mais recente até a publicação desta reportagem, os temporais afetaram 478 municípios, do total de 497. O desastre natural, considerado um dos maiores da história do Brasil, impactou direta e indiretamente mais de 2,3 milhões de pessoas e ceifou 179 vidas.

No pico da crise humanitária, o panorama registrou cerca de 530 mil desalojados, quase 78 mil resgatados e 12.543 animais salvos. Cidades ficaram submersas. Enchentes e deslizamentos deixaram marcas evidentes e geraram um sofrimento coletivo intenso. Profissionais, vítimas e voluntários relataram ter a sensação de viver o mesmo dia por semanas.

O cenário de destruição, reflexo da quantidade elevada de chuva sob efeito do El Niño e da consequência do aquecimento global, provocou, além de prejuízos econômicos, danos psicológicos. Não à toa, a saúde mental tornou-se uma preocupação de saúde pública e o fenômeno potencializou discussões acerca da ecoansiedade.

Enquanto as águas baixam e o governo lança iniciativas para reconstruir um estado inteiro, os cidadãos, que perderam o senso de pertencimento e tiveram os aspectos de habitabilidade, empregabilidade e dignidade profundamente afetados, entram na fase de restauração emocional.

É o que explicam, a seguir, a psiquiatra do Hospital São Lucas da PUCRS, professora da Escola de Medicina da PUCRS e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Ana Sfoggia, e a psicóloga, head de saúde mental da healthtech Starbem e pesquisadora e especialista em situações de desastres, Ticiana Paiva.

Sinais da catástrofe socioambiental

Eventos culturais e esportivos, bem como atos políticos de revolução, traçam a história da humanidade. Contudo, às vezes, os momentos cruciais não são progressivos, mas definidos por meio de violência e tragédia. Em maio, o Rio Grande do Sul teve o seu curso histórico afetado. Inundações levaram vidas, memórias, moradias, empregos e espaços comunitários.

Com o bem-estar e a segurança ameaçados, alguns sinais são considerados normais, segundo afirma a psiquiatra Ana Sfoggia, que atuou em abrigos durante a catástrofe socioambiental. “As pessoas chegavam com reações emocionais esperadas, que variam entre choque e preocupação em relação ao futuro.”

Ansiedade, incerteza e raiva também são sentimentos comuns. “As famílias estavam separadas. Chegavam os resgates e não eram levados todos juntos. Muitos haviam perdido o celular ou estavam sem bateria e sentiam medo de ter acontecido algo”, relata a médica.

Neste contexto, taquicardia e sudorese são reações físicas atribuídas ao dano psicológico. Passados estes primeiros episódios, Ana esclarece que o cérebro da vítima procura se adaptar à nova situação. “Então, começa o processo de luto coletivo e individual, porque cada um perdeu algo. E todas estas são emoções relacionadas a uma grande perda e a um grande trauma.”

Carlos Sillero Psiquiatra do Hospital São Lucas da PUCRS, professora da Escola de Medicina da PUCRS e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Ana Sfoggia

Fase de restauração

A vida foi transformada em razão da catástrofe socioambiental. Pessoas tiveram o cotidiano abalado do detalhe mais ordinário até o mais fundamental: vítimas sem nada, ruas inexistentes, estações de metrô submersas por dias, aeroporto indisponível por meses e destroços por todo o lado. Estes são alguns exemplos dos transtornos causados pelas cheias.

A professora afirma que ao retornar aos endereços, os gaúchos podem reviver a dor. “É como se fosse um segundo trauma. Viram a água subir e separaram-se das famílias. Agora passam a limpar o que
restou e a calcular o que se pode fazer. É um momento de emoções misturadas”, sintetiza.

Nesse sentido, o cenário promove uma série de reações, mas o diagnóstico para avaliação só é possível depois de um mês do trauma, assegura Ana. “Continuam desenvolvendo sintomas, que configuram transtorno de estresse pós-traumático, como sonhos, flashback e lembranças. Voltar à funcionalidade ainda não é possível, porque agora se inicia a fase da reconstrução e existem pessoas em
todos os estágios de emoções”, salienta.

Para a especialista, é essencial permanecer vigilante. “Estudos indicam que depois de eventos traumáticos climáticos há um aumento de casos de transtorno de ansiedade e depressão. Mas é a primeira vez que
97% de um estado é atingido. É uma proporção inusitada e uma situação diferente. Precisamos ficar atentos”, argumenta. Contudo, assegura que a maioria das crianças e dos adultos ficarão bem do ponto de vista da saúde mental.

Explica, também, que as emoções são válidas, legítimas e integram o ciclo natural da superação, sendo essencial dar vazão aos sentimentos com liberdade. “Ao processar emoções, as pessoas estão
processando traumas e caminhando para a restauração”, sustenta.

Como o trauma age?

De acordo com a psiquiatra, o trauma surge quando o cérebro sofre algum tipo de impacto ocasionado por um evento marcante. “A reação ao trauma é individual e conforme as vivências prévias de cada um.” Além disso, a médica afirma que estudos focados nos prejuízos à saúde mental em decorrência de desastres naturais apontam que a faixa etária influencia no processo.

Ou seja, crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos podem responder de formas diferentes. Na infância, a plasticidade neuronal — capacidade de mudança adaptativa na estrutura e nas funções do sistema nervoso — é maior e isso pode impactar negativamente ou não a criança, segundo Ana. “É muito individual e depende do quanto os cuidadores foram protegidos e de como reagiram”, pondera.

Ainda, é importante dar espaço para a criança explorar o lúdico, brincar e construir a própria narrativa
sobre o que aconteceu. “Nos abrigos, procuramos disponibilizar papel em branco para desenharem livremente, sem intervenções, para que pudessem processar do seu jeito, com a bagagem e a percepção prévia ao trauma.”

A liberdade de sentir

Durante mais de 40 dias, o silêncio de espaços públicos, antes cheios de vida, assustou tanto quanto o barulho da chuva. E enquanto gatilhos individuais passavam a se estabelecer em conjunto, a dor causada pela maior catástrofe socioambiental da história dos gaúchos ganhava repercussão global.

Para a psicóloga, head de saúde mental da healthtech Starbem, pesquisadora e especialista em situações de desastres, Ticiana Paiva, é necessário compreender a cena de forma coletiva. “Quando vemos as imagens, sabemos que tinha um bairro, com lugares que gostavam de frequentar, que não é mais o mesmo. E resta a dúvida se vai se restabelecer e quanto tempo pode levar. Então, existem níveis de proximidade do desastre e, consequentemente, isso afeta as pessoas de formas distintas. É possível estar distante e sentir-se abalado e estar perto e lidar bem.”

 Psicóloga, head de saúde mental da healthtech Starbem, pesquisadora
e especialista em situações de desastres, Ticiana Paiva
Letícia Puke Psicóloga, head de saúde mental da healthtech Starbem, pesquisadora
e especialista em situações de desastres,
Ticiana Paiva

O finito é (quase) palpável

A solidariedade também deixou marcas. Pessoas de todo o Brasil, e do mundo, se uniram em prol do Rio Grande do Sul, resultando em campanhas diversas. Mas, mesmo com a ajuda frequente, o sentimento de
culpa reverberou em muitos.

Segundo Ticiana, a sensação é atribuída ao fenômeno da “culpa do sobrevivente”. “Relatos na literatura e de pesquisas detalham sobre isso acontecer de forma natural em desastres. Os que sobrevivem se questionam: ‘e por que não eu ou a minha família?’. Pois, de alguma forma, passar por isso é tocar o limite da vida e perceber que não controlamos as coisas. Estar diante do inesperado causa desestabilização emocional”, esclarece.

De acordo com a psicóloga, a experiência promove o contato com a morte, provocando questionamentos profundos. “O inesperado e a finitude nos causa, muitas vezes, a sensação de culpa e de insuficiência de atos. É preciso perceber isso como normal e se acolher. E se o sentimento não for dissolvido ao longo das semanas, é importante procurar ajuda de um especialista capaz de realizar o manejo em circunstância de desastre ou crise”, avalia.

Primeiros socorros psicológicos

Os Primeiros Socorros Psicológicos (PSP) foram desenvolvidos como forma de suporte às vítimas de situações calamitosas. “Instituições, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), indicam aplicar os PSPs, porque se cuidarmos das pessoas vulneráveis logo que acontece a tragédia, evitamos que, a médio prazo, adoeçam e tornem-se ansiosas e depressivas. Por isso, é tão importante discutirmos o assunto”, reforça Ticiana.

Formas de enfrentamento

Para Ticiana, observar pensamentos intrusivos e se autocuidar é essencial. “Para cuidar do outro é preciso cuidar de si. É a analogia da máscara do oxigênio: primeiro coloca em você para depois ser capaz de ajudar.”

Além disso, encontrar maneiras de extravasar os sentimentos deve ser prioridade. “É importante perceber o que gera gatilhos, porque podem acontecer e deixar a pessoa estressada, sem dormir, com agitação, taquicardia e medo. Então, é preciso buscar formas de enfrentamento. O ser humano é capaz e a maioria das pessoas no contexto de desastre, a médio prazo, ficará bem”, defende.

O que é ecoansiedade e solastalgia?

O senso de pertencimento guia uma vida para o bem-estar. Indivíduos são sociais e desejam fazer parte de algo. Por este motivo, perder espaços comunitários, moradias e objetos basilares de uma história perpassa o material, afetando diretamente a sociedade e os aspectos de identidade e representação cultural. Então, ao destruir zonas rurais e urbanas, as enchentes geraram um processo de
luto coletivo e individual.

Segundo a psiquiatra Ana Sfoggia, o fenômeno pode ser explicado por meio da solastalgia. O termo, que recebe destaque nas discussões recentes, se refere ao desconforto mental causado por mudanças climáticas negativas, levando a um sentimento de perda do lar mesmo estando nele. Em suma, é a nostalgia sentida sem estar distante do local. “É um fator bem importante relacionado à perda da identidade através dos seus pertences e da sua terra”, elucida.

O conceito também está associado à ecoansiedade: sensação crescente de medo, preocupação e angústia sobre os impactos da mudança climática. “É algo que todos estamos vivendo. É uma perda coletiva, de espaços de convivência nas cidades e do estado. As pessoas ainda estão apurando os prejuízos. Para mim e para muitos, existe o receio do próximo evento extremo”, detalha a especialista.

Ainda, Ana explica que a hipervigilância aos fenômenos naturais passa a se tornar um hábito desencadeado pelo medo de uma nova catástrofe desconfigurar a vida. “Vamos aprender com isso e nos preparar para a realidade do planeta.” Nesse sentido, a psicóloga Ticiana Paiva defende a atitude reparadora de refazer laços e construir novas histórias. “Como? Começando a se reunir em outros locais. Mas, para alguns, pode ser difícil e doloroso”, aconselha.

Quando procurar ajuda?

“Emoções são livres e benéficas, mas precisamos ficar atentos nas que afetam a funcionalidade e paralisam as pessoas”, enfatiza Ana. Neste contexto, insônia, alteração alimentar e de comportamento e incapacidade de retornar à rotina são sinais de alerta. “Ao perceber que os gatilhos não cessam e que o choque impede de viver, é hora de buscar ajuda profissional”, finaliza Ticiana.

Onde buscar cuidado psicológico?

Uma série de pontos integrantes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS), ofertam auxílio em cada município: Unidade Básica de Saúde (UBS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Unidades de Acolhimento (UA), Hospitais Gerais e Centros de Convivência e Cultura. Além disso, Ana indica instituições médicas, como Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) e Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers), e o Centro de Valorização da Vida (CVV), disponível 24 horas por dia, através do canal 188.

A saúde do planeta grita

Em 2023, o Brasil bateu recorde de ocorrências de catástrofes hidrológicas e geohidrológicas. A informação é confirmada pelo tecnologista Rafael Luiz, do Centro Nacional de Desastres Naturais,
unidade de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Conforme os dados, no ano passado foram registrados 1.161 eventos de tragédia natural no país, sendo 716 de transbordamento de rios e 445 deslizamentos de terra. O aquecimento global mostra os efeitos da negligência humana e as crises socioambientais despontam como um lembrete.

Com a temperatura média do planeta aumentando, cerca de 1,1 graus celsius desde 1880, de acordo com a McKinsey & Company, a intensificação de chuvas torna-se uma preocupação diária. Afinal, “os sistemas físicos não foram projetados para o clima atual, mas para o clima do passado”.

A afirmação da Mekala Krishnan, membro sênior do McKinsey Global Institute (MGI), salienta a necessidade emergente de reestruturação urbana, aproximação de uma rotina que esteja alinhada com o ciclo natural do meio ambiente e de políticas públicas que assegurem a dignidade e o bem-estar físico e mental dos cidadãos, principalmente em comunidades marginalizadas, vítimas da desigualdade social e mais expostas aos riscos em razão da geolocalização.

Daiani Aguiar

Jornalista formada pela universidade Feevale e pós-graduanda em moda pela PUCRS, com cursos de branding pessoal e fashion content. Atua na comunicação desde 2020, com experiência em rádio, agência de marketing, assessoria de imprensa e hard news. Comunicadora do Like 103.3 na ABC FM e editora nos veículos segmentados do Grupo Sinos, realiza entrevistas e produz reportagens especiais. No impresso, no digital e nas mídias sociais, produz conteúdo multiplataforma sobre as tendências em moda e lifestyle. Presta assistência em editoriais de moda e cobre as principais feiras calçadistas da América Latina. É defensora dos Direitos Humanos, não come carne e ama gatos, filmes clássicos e viagens.

E-mail: daiani.aguiar@gruposinos.com.br

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