“Comecei a ter retorno depois que tirei a foto do currículo.” O relato da jornalista e head de Diversidade e Cultura, Andressa Lima, 30 anos, enfatiza uma realidade há muito escrachada no Brasil: o racismo estrutural. Formada desde 2018, a profissional encontrou mais dificuldades do que oportunidades para ingressar no mercado de trabalho. E ela não é minoria. Ela é minorizada e integra o coletivo de milhares de mulheres negras com a porta do sim fechada.
De acordo com o Censo Multissetorial de 2022, “Representatividade, Diversidade e Percepção”, realizado pela Gestão Kairós, com 26.619 respondentes, quando os aspectos são raça e etnia existe uma forte disparidade em relação à presença feminina nas empresas. O dado de mulheres negras é quase dez vezes menor do que o de mulheres brancas (88%), correspondendo a 9%, em que 2% são mulheres pretas e 7% pardas. O levantamento também aponta a ocupação de mulheres amarelas e indígenas, que representam 0,23% e 2%, respectivamente.
Os números expressivos, somados aos tantos estudos e observatórios que medem os índices de violência e exclusão de grupos específicos de diversidade, evidenciam o que a sociedade sente na pele e reproduz há gerações. O último relatório “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta diferenças significativas em detrimento de negros, nos aspectos de trabalho, renda, saúde, educação, condições de moradia, violência e morte.
Com a negritude sofrendo violação diária dos Direitos Humanos, Andressa carrega a convicção de que, atualmente, a falta mais grave é a ausência de atitudes aliadas. Por isso, os problemas crônicos de racismo, machismo e sexismo precisam ser assumidos e denunciados, sendo urgente olhar para os lados e se perguntar: quem está na sala? “Se estiver muito igual é porque está errado”, pondera a jornalista.
Sintomas do racismo
Tornar-se bacharel em comunicação social foi a conclusão de um ciclo de luta essencial para Andressa alcançar o sonho de construir progresso na carreira. “Decidi ainda na adolescência que queria ser jornalista. De início, desejava trabalhar com cultura pop, porque sempre gostei de música”, lembra.
Contudo, aos poucos ela foi experienciando a dura realidade enfrentada por pessoas negras, principalmente mulheres. “Foi difícil e complicado. A falta de oportunidade molda nossos desejos e isso tem sido uma das piores descobertas”, desabafa. Segundo ela, durante a graduação teve muitas experiências, mas depois todas cessaram.
Após receber muitos “nãos” no Vale do Sinos, Andressa decidiu buscar em Porto Alegre as portas que tanto desejou ver abertas em Novo Hamburgo. “Percebi que existia um abismo em relação ao que eu queria e ao que eu podia fazer, determinado pela sociedade. Acabei me mudando para trabalhar em outras coisas, a gente se vira como pode”, conta.
Depois que tirou a foto do currículo, ela foi convidada a participar de processos seletivos para os quais antes havia sido ignorada. “Esse é um sintoma muito grande do racismo e me pegou muito, influenciando na decisão de ir à capital.” Com a pandemia, veio também a possibilidade de trabalhar remotamente. Foi de forma digital que o tão aguardado sim chegou. “Consegui oportunidade no eixo Rio-São Paulo e me inseri no circuito de agências. Gosto muito.”
Identidades marcadas
De acordo com o coordenador do Núcleo de Estudos sobre Diversidade na Faculdade IENH, Luís Cerveira, além das questões étnico-raciais e de gênero, fatores como orientação sexual e condição física também corroboram para o cenário de exclusão. “Trabalhamos a diversidade a partir de conceitos sociológicos. Um deles é o marcador social, que significa tudo aquilo que retira da pessoa uma oportunidade, ou seja, que transforma a vida em algo ainda mais difícil”, explica.
Segundo o especialista, o topo da pirâmide é ocupado pelo homem branco, cisgênero, hétero, com formação superior. E tudo o que contraria este padrão, como Pessoas com Deficiência (PcDs), mulheres, especialmente transexuais, negros e quem se identifica como LGBTQIAPN+, sofrem prejuízos. “Os marcadores sociais não têm o mesmo peso. Em relação às mulheres negras, é preciso considerar a interseccionalidade, unindo o marcador de gênero e o de raça e etnia, com dificuldade muito mais intensa.”
Qualificação deslegitimada
Em 2020, Andressa foi selecionada para integrar a coletânea de crônicas “Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras”, obra promovida pela Festa Literária das Periferias (Flup), do Rio de Janeiro. A partir disso, despertou para o universo literário, tornando-se mestranda em Teoria da Literatura, pela PUCRS, em 2022. “Entendemos que existia um número muito baixo de autoras negras com livros publicados. E isso deu esse ‘bum’ de muitas publicadas ao mesmo tempo”, celebra.
Participar do projeto também acendeu em Andressa o interesse em prestar consultoria de diversidade, atividade que executa há quatro anos. “Venho da militância há muito tempo, mas fui me inserindo aos poucos, mais pela falta de oportunidade do que pela oferta, porque consegui entender quem não conseguia se colocar no mercado. Tenho feito esse trabalho, enquanto jornalista, mulher e negra, de identificar as demandas de uma população extremamente qualificada que está à margem de oportunidades, por não ser preferência.”
Layla, presente!
Se posicionar sobre causas raciais e de gênero sempre foi natural para a publicitária, Layla Moura Alves, 23 anos. “Eu cresci numa família de professores, minha mãe leciona história, então estes temas sempre foram pautados em casa”, compartilha. Contudo, estar ciente da realidade excludente não significa estar preparado para ser impactado por ela. “Ao entrar no ensino médio começamos a nos dar conta de algumas coisas e querer aprender mais sobre as causas”, comenta.
Para ela, falar sobre os temas se tornou necessário à medida que percebeu ser a única pessoa negra na sala de aula. “Às vezes tinha mais uma, então comecei a sentir necessidade de falar mais com os recursos que tinha, como nos trabalhos acadêmicos.”
No campus universitário não foi diferente, Layla também notou a baixa presença de professores e estudantes negros. A partir disso, surgiu a ideia de desenvolver uma ação afirmativa relacionada ao Dia da Consciência Negra. “Todos os semestres ocorria a abertura para os cursos de comunicação, então eu sugeri ao coordenador de fazermos uma palestra com profissionais pretos do Rio Grande do Sul. Foi muito legal”, recorda.
Inerente à existência
Ser mulher e negra são atributos inerentes à identidade de Layla, que desbravou diversos caminhos até chegar na jornada atual: trabalhar na Obvious Agency, canal de comunicação on-line que propaga a liberdade feminina. Antes disso, ela atuou em uma agência composta somente por pessoas negras, a Mooc (Movimento Observador Criativo), de São Paulo. A experiência rendeu a perspectiva de que a criação de projetos que buscam e valorizam o olhar criativo da negritude é fundamental para promover a participação ativa da comunidade negra no mercado de trabalho, principalmente de mulheres.
“Trabalhar na Obvious está sendo muito legal. Tenho liberdade para construir ideias sobre fatos corriqueiros que acontecem na vida da mulher negra”, afirma. Para a publicitária, a área da comunicação, aliada à potência das mídias sociais da agência, resulta no alcance de mais pessoas e, consequentemente, de mais mulheres negras representadas.
Contratação afirmativa
Em relação à inserção da comunidade negra, Layla ressalta a importância das indicações e de furar a bolha. A conclusão foi extraída durante o desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), no qual abordou os entraves enfrentados por profissionais negros no mercado de trabalho. “Nas agências, é comum o pai passar a gestão para o filho, que indica colegas brancos para o meio. Isso cria um ciclo vicioso e para furar a bolha é bem difícil”, avalia.
Outro ponto forte são as contratações afirmativas para emplacar a população negra nos ambientes corporativo e universitário. “Se não especificar como vaga afirmativa, sempre vão surgir as mesmas pessoas, então, para encontrar alguém negro para o cargo, é preciso especificar”, sugere. Layla ainda defende o letramento racial nas empresas, a fim de que os profissionais permaneçam nos locais sem sofrer violência ou intolerância racial. “Se tem baixa presença de pessoas pretas, esse profissional estará suscetível a sofrer preconceito, por isso além das vagas afirmativas, é preciso se dar conta que uma só pessoa preta no ambiente não significa diversidade”, completa.
Jornada solitária
“Mulheres negras estão à margem da sociedade e essa tem sido uma jornada solitária. Ser mulher e negra não é fácil. Racialmente falando, existe uma cobrança muito grande de que, para ser notada, é preciso ser melhor em tudo e isso faz parte de todos os momentos da vida”, desabafa Layla. Por isso, a publicitária salienta que para ela, trazer os iguais para perto é a melhor estratégia. “É o que busco fazer com todos os meus amigos negros. Pra mim é sobre isso, desejar sucesso para todos.”
Retrato da discriminação
As vivências de Andressa e Layla retratam a discriminação e o preconceito e demonstram as consequências na dignidade das pessoas negras. “O racismo no Brasil é inegável. É a população mais pobre, que mais morre, mais encarcera, com menos oportunidades e que ocupa menos cargos de poder”, afirma o coordenador do Núcleo de Estudos sobre Diversidade na Faculdade IENH, Luís Cerveira.
Para o especialista, o fato recai sobre a mulher negra de uma forma mais agressiva e perversa. “Não há dúvida que existe um nível de exigência muito alto: precisam estudar mais e se dedicar mais para chegar próximo às oportunidades de brancos. Isso traz adoecimento psíquico e físico e uma sobrecarga absurda sobre diversos aspectos, somado a todos os males que o racismo, a misoginia e o machismo causam”, observa.
Luís também aponta que o mercado de trabalho para a mulher negra é mais difícil do que para o homem branco, do que para a mulher branca e mesmo do que para o homem negro. Ainda, reforça que mulheres com orientações sexuais diferentes à heteronormatividade serão ainda mais severamente impactadas.
Baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios mais recente, Luís afirma que mulheres negras recebem de 70% a 46% menos que homens brancos, além de serem maioria entre desempregados no país. Também sofrem mais violência de gênero comparado às mulheres brancas e são maioria entre o empreendedorismo de necessidade, quando não se empreende por vocação, mas por não haver outra alternativa.
O especialista ainda salienta que o racismo institucional é uma constante. “Quando uma mulher negra se candidata para uma vaga de emprego em cargos onde se exige mais qualificação, existe o viés inconsciente racista de que ela não é o perfil. Isso não tem a ver com condição ou habilidade. É a sociedade que não está acostumada a ver mulheres negras líderes. Então mesmo quando têm habilidades necessárias e competências, são descartadas.”
Vire a chave
“O racismo é um problema muito grave. Marca as pessoas, ditando quem pode estar onde e como”, reflete Luís. Para ele, o primeiro passo para eliminar os vieses racistas inconscientes é identificá-los. O especialista também defende a implementação de treinamentos de sensibilização nas empresas para acolher, incluir e reter talentos negros, bem como promover ações antirracistas.
Outro aspecto é buscar profissionais especializados em questões de diversidade para combater o racismo institucional. “Isso não pode ser feito por pessoas bem intencionadas. É preciso incluir representatividade racial e de gênero juntamente com conhecimento técnico e acadêmico. As empresas precisam se dar conta de que contratar mulheres negras vai tornar as organizações mais criativas, competentes e competitivas”, conclui.