O ano de 2023 foi impactado por mais catástrofes climáticas do que gostaríamos de ter sido capazes de suportar. Inclusive, muitos não conseguiram. No meio de graves acontecimentos, de uma pandemia ainda latente, de conflitos geopolíticos, de incertezas econômicas e do registro da maior greve da indústria do cinema em seis décadas, enfrentamos a pressão de resolver questões sociais relevantes. Para além disso, a constante explosão de mini trends geradas por uma das principais plataformas de conteúdos da atualidade, o TikTok, parece resultar de um mesmo padrão comportamental. E, por isso, a moda costura tão bem estas linhas.
De acordo com o Global Fashion Agenda (GFA), organização sem fins lucrativos, a indústria do vestuário e do calçado é a segunda mais poluente do mundo. Em contrapartida, emprega mais de 60 milhões de pessoas globalmente, sendo 80% mulheres. Com um modelo de negócio insustentável — em que relatórios e especialistas apontam a emergência de uma mudança concreta — a moda impacta diretamente a vida de cada um de nós.
Inclusive, a cena icônica do filme Devil Wears Prada (Diabo Veste Prada, em tradução livre), inspirado no livro homônimo de Lauren Weisberger, protagonizada por Miranda Priestly (Meryl Streep) ensinando Andy Sachs (Anne Hathaway) sobre a criação de tendências e o funcionamento da cadeia produtiva das cores, provoca reflexões necessárias. Porque, embora muitas pessoas atrelem moda à futilidade, o segmento conta a história da humanidade e se destaca como ponto fundamental na construção de identidades — seja de forma consciente ou não.
Pelo menos, é o que defende o palestrante, autor, consultor e especialista em design para sustentabilidade, André Carvalhal, e a especialista em moda infantil, pluz size e acessórios, Polyana Gouvêa. Nas próximas páginas, se informe sobre o tema e confira dicas da empresária e influenciadora, Gabriella Zatta.
Moda a serviço da vida
Autor dos best-sellers ‘Moda com Propósito: Manifesto pela Grande Virada’, de 2016, e ‘A Moda Imita a Vida: Como Construir uma Marca de Moda’, de 2020, André Carvalhal é um nome recorrente quando os assuntos são comportamento e sustentabilidade. Motivado por promover a expansão da consciência, o especialista enxerga a moda como ferramenta de liberdade. “Mais do que roupas, tendências e produtos, moda é algo que precisa estar a serviço da vida e dos sonhos das pessoas.”
Embora percebida como frívola, a moda expressa identidades. Se na antiguidade era usada como meio de segregar e excluir, atualmente contribui com aspectos que permeiam a política e a construção da autoestima e da autoaceitação. E, apesar dos padrões hierárquicos ainda ditarem disparidades e limitações, a pluralidade fashion ganha espaço, público e ação. “Desde a Revolução Digital, temos a chance de nos conectar com mais pessoas e ouvir mais histórias. O mundo mudou e isso impactou diversas áreas da vida, inclusive a moda”, pondera Carvalhal.
Tendências que refletem contextos
Padrões elitistas sustentados por gerações ainda exercem influência. Um exemplo disso é a estética Quiet Luxury (luxo silencioso, em tradução livre). O termo ganhou mais força desde a série ‘Succession’ — vencedora em diversas categorias das recentes premiações do cinema — e está associado ao minimalismo. Roupas básicas de alta qualidade, sem logotipos e excessos são o foco da tendência, que também preza pela qualidade, versatilidade, durabilidade e pelo conforto. Mas, a principal característica são as grifes representantes: Hermès, Bottega Veneta, Miu Miu e Prada, são exemplos. Segundo especialistas, o Quiet Luxury é uma adoção de estilo de classes elevadas que não desejam ostentar frente às policrises que atingem as massas.
É nesse sentido que a moda escracha o contexto social de cada um. Cada peça comunica algo. Muitas vezes, não por opção, mas por realidade. “A moda pode servir como uma série de marcadores: classe, raça e gênero. Porque essa foi a forma como fomos habituados e socializados. Mas acredito que a própria moda tem a chance de subverter estes padrões, uma vez que entenda o potencial de libertar e não de uniformizar e reforçar modelos que não fazem sentido às pessoas.”
A primeira noção que precisamos ter é que vestimos planta, bicho e petróleo
André Carvalhal
Modelo insustentável
Dados da GFA apontam que a indústria da moda global produziu cerca de 2,1 mil milhões de toneladas de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) em 2018. O número representa 4% do total mundial. “A primeira noção que precisamos ter é que vestimos planta, bicho e petróleo. Todas as nossas roupas têm essa origem e fazemos parte de tudo isso, da natureza. O que exploramos e extraímos para produzir roupas, vêm do mesmo lugar de onde viemos. Tudo está completamente ligado à sobrevivência da nossa espécie na Terra”, alerta Carvalhal.
Ainda, segundo os relatórios da GFA, desde a Revolução Industrial, as emissões de GEE contribuíram para o aquecimento atmosférico que elevou as temperaturas no planeta em, aproximadamente, 1,1 grau. O resultado? Inundações, incêndios, secas, tempestades, fatalidades e problemas socioeconômicos. Além disso, consequências na habitabilidade e trabalhabilidade, nos sistemas alimentares e no capital natural.
Nesse sentido, o desafio dos líderes mundiais da indústria da moda é de reduzir os impactos e prosperar com resiliência.
Mas, num cenário de aceleração do consumo e de recursos finitos, a GFA prevê um aumento de 2,7 mil milhões de emissões de GEE por ano até 2030. Também revela que a circularidade global é de 7,2% e que 90% dos materiais são desperdiçados, perdidos ou inutilizados para reutilização. “Enquanto entendermos o planeta como shopping center, de onde extraímos tudo sem respeito, limite ou critério para produzir coisas para uma sociedade de consumo, não caminharemos para um modelo sustentável. Precisamos ter essa clareza”, reflete Carvalhal.
Moda como único caminho
Influenciada pela irmã mais velha, Polyana Gouvêa, 29 anos, nunca teve dúvidas sobre qual carreira seguir. “Ela é formada em moda. Então, quando eu estava no ensino médio, a acompanhava e peguei muito gosto pela parte do desenho. Enquanto ela assistia às aulas, eu ia para a biblioteca desenhar. Pedia para pegar livros para mim, via os trabalhos e conheci amigas e colegas da graduação. E cada vez eu me apaixonava mais”, conta.
Além de graduada em moda pela Universidade Feevale, Polyana cursou design de calçados e desenho. “Me envolvi bastante, tanto no segmento de vestuário como de calçado. Então, quando chegou o vestibular, não me restava dúvidas.” Depois de somar experiências em agências de assessoria de moda e gráficas, em 2014, Polyana iniciou a trajetória profissional na Use Fashion, atualmente Start by WGSN, braço da Worth Global Style Network — empresa líder mundial em previsão de tendências.
Rotina que alimenta
Apaixonada pela pesquisa, Polyana produzia conteúdos gerais de celebridades e street style. E, com o tempo, se especializou em moda infantil, plus size, joias e bijuterias. “Pesquisamos marcas internacionais que possam ser interessantes, que às vezes o público não conhece. Traduzimos informações de moda para o consumidor brasileiro, trazendo dados assertivos para o desenvolvimento de coleções”, explica.
Além disso, analisam o aspecto comportamental. “Olhamos para tudo: filmes infantis, lançamento de brinquedos, séries de TV, elenco. Então, juntamos uma base de informações substanciosas para transformar em tendência de vestuário, calçado e acessório.” Embora seja especialista em segmentos nichados, Polyana realiza pesquisas diversas, como cores, estampas e peças-chaves. “Reunimos apostas gerais que são as macros da temporada. Quando acabam as semanas de moda, analisamos tudo, junto com as feiras que cobrimos, e lançamos as tendências de moda feminina geral”, detalha.
Outra função na lista dos favoritos, é a cobertura da São Paulo Fashion Week (SPFW), cena da
moda brasileira. “Dá para ver muita mudança no evento. Antes víamos marcas grandes. Hoje, é referência para talentos emergentes. Gosto, porque dá espaço para a moda autoral e diferente. Assistir as transformações e fazer networking é muito legal. Adoro ir no backstage para conversar com estilistas, ver as peças de perto e saber o que está por trás da coleção.” Para ela, acompanhar há quase uma década os desfiles possibilita mais embasamento para desenvolver os conteúdos.
A moda é abrangente e interessante para quem está aberto a conhece
Polyana Gouvêa
A alegria de ser e estar
“Não tem como desatrelar a moda de comportamento. Está tudo ligado. Para desenvolver qualquer tendência ou peça, é preciso entender quem é o público. As pessoas têm uma visão fútil do que é moda, porque acham que é só roupa e calçado. Não enxergam o que está por trás do desenvolvimento de tudo”, examina a especialista. Polyana conta que a faculdade foi um dos facilitadores para evoluir a perspectiva do setor. “Eu tinha uma ideia de costura e desenho. Mas a pesquisa e a história da moda são temas muito legais, que só são conhecidos por quem está no meio. A moda é abrangente e interessante
para quem está aberto a conhecer.”
Preenchida na carreira, a especialista não se vê fora do segmento. “Entrei muito nova. Estou quase fazendo 30 anos e a moda teve um papel muito importante para eu ser quem sou. Me fez mudar junto com as transformações e crescer como pessoa. Não me imagino trabalhando em outra área. Estar na empresa que estou é muito satisfatório também. Sou muito realizada”, relata entusiasmada.
Paixão, criatividade e negócios
Longe de significar roupa, calçado, acessório ou tendência rasa, moda é uma forma de imprimir um estilo de vida e de transformar a criatividade em negócios. Foi o que fez Polyana ao criar a Petit Pii, marca de acessórios artesanais, que segue o modelo slow fashion. “A ideia nasceu pela paixão por produtos infantis. Gosto da área e por meio de pesquisas percebi que não existem muitas empresas com o foco atemporal.” Com o projeto iniciado em 2022, ela produz laços feitos à mão, em materiais como o linho e em tons sóbrios.
Moda como oportunidade
Com o mesmo foco em aproveitar oportunidades, a empresária e influenciadora, Gabriella Zatta, 33 anos, atua em diferentes nichos da moda e decoração. “Venho de uma família do agronegócio e desde cedo fui introduzida no segmento. Hoje, faço parte da gestão administrativa, mas também sou empreendedora”, conta. É fundadora do Donna Home Brand, marca de jogos americanos e prataria, e sócia da KZA 3, empresa de curadoria fashion. “Ao lado da Bruna Kehrnvald e Efrancielle Zatta, acompanho as tendências de moda mundiais com as principais brands internacionais de luxo e alto luxo.”
Comunicação e marca pessoal
Influências culturais, sociais e econômicas de uma época moldam a maneira como as pessoas pensam, agem e criam. Este é um dos fatos que explicam o surgimento de movimentos artísticos, tendências de moda, ideologias políticas e mudanças comportamentais, por exemplo, que são distintas de uma época para outra. Nesse sentido, indiretamente ou não, todos fazem moda e estão conectados por ela.
Os aspectos também estão relacionados ao processo de definir e promover quem se é, impactado por vivências, habilidades e valores, chamado de marca pessoal. “Todos se vestem e as roupas expressam muita coisa. Comunicam humor, sentimentos, classe, raça e gênero, de acordo com os padrões estabelecidos na sociedade. Então, a todo momento, a partir das escolhas feitas e do que as imagens significam para as pessoas, emitimos mensagens. Comunicamos sobre quem gostaríamos de ser. E isso impacta na nossa vida em uma série de fatos, da construção da identidade, individuação, ao senso de comparação, pertencimento e autoestima”, explica o consultor e especialista em design para sustentabilidade, André Carvalhal.
Segundo ele, a marca pessoal existe independente de ser vista como estratégia de comunicação. “Faz parte da forma como as pessoas nos reconhecem no mundo. Quando entendemos isso, podemos usar a moda ao nosso favor para construir uma imagem coerente com o que desejamos”, argumenta. O mesmo pensa Gabriella, que além de um negócio, percebe a moda como a adoção de uma postura. “É a maneira como me expresso e mostro minha personalidade. Faz parte do meu dia a dia. Conectar marcas e pessoas é o meu maior incentivo.”
A influenciadora também entende o setor como aliado do autocuidado, da transformação pessoal e do empoderamento feminino. “As semanas de alta costura e prêt-à-porter, são eventos-chave para acompanhar as tendências. Para quem gosta, vou pontuar apostas que já estão nas ruas: maxi bolsas, cores vibrantes, metalizados e peças esportivas incorporadas no look diário”, orienta.
O impacto das mini trends
Dominado pelas mídias sociais, o mundo da moda se tornou um espetáculo à parte. Grifes anseiam por um momento viral, apresentando desfiles memoráveis. E nesta mesma onda estão as mini trends do TikTok. A plataforma, acessada principalmente pela geração Z, exerce enorme influência comportamental.
Nesse sentido, Carvalhal afirma que apostar no que é verdadeiro para si é a grande chave. “Diante de tantas tendências, é sim um desafio muito grande ter a nossa identidade e manter quem somos e o que deveríamos fazer. Mas nos moldamos ao que vemos no mundo e entendemos que precisamos incorporar. Olhar para os comportamentos e para os movimentos mundiais para absorver e adaptar o que faz mais sentido, deveria ser natural, mas se tornou um exercício de afirmação e consumo”, justifica.
O especialista brinca dizendo que na infância ouvia muito a expressão “você não é todo mundo” e relata o quanto isso o esclareceu. “Eu gostaria que as pessoas também lembrassem disso. Os movimentos, as tendências, o comportamento e a padronização tendem a nos levar para um determinado formato e nos engavetar. Quando eu observo as pessoas, vejo muitos fazendo isso, mas também outros buscando se libertar. Espero que consigamos. E que a galera da corrente da liberdade tenha mais representatividade”,
finaliza. Mesmo porque, as mudanças iniciadas, sejam individuais ou coletivas, transcendem as fronteiras da indústria da moda e possibilitam um efeito cascata em diversos outros segmentos.
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