Beleza

Identidade: o cabelo como ferramenta de expressão pessoal

O cabelo é ferramenta de identidade, conexão e opressão

Publicado em: 10/09/2024 14:03
Última atualização: 10/09/2024 14:58

Quando nascemos, os fios são curtos. Ao envelhecer, a tonalidade muda. Entre um acontecimento e outro, o cabelo ganha comprimentos, tinturas, procedimentos e penteados. Em diferentes sociedades, há alguns séculos, este elemento indica fases da vida e status financeiro. As madeixas expressam preferências, garantem segurança e celebram marcos — afinal, quem nunca fez um corte significativo após um término de relacionamento?

“O cabelo vai carregar a identidade, o gosto pessoal, a genética e eu me arrisco a dizer que, inclusive, ele carrega um pouco da nossa história também”, inicia a professora de estética e mestre em Diversidade Cultural e Inclusão Social, Fernanda Bertim. A força de Sansão, o corte de Coco Chanel, a rebeldia dos hippies, o black power: ao longo do tempo, os fios demonstraram convicções, crenças e opiniões. E a conclusão não poderia ser outra: o cabelo nos posiciona socialmente e afirma: “eu sou quem eu sou”.

Entre escolhas que ditam tamanho, textura e cor, a autopercepção é construída e gera conexão com outros indivíduos — seja a partir da religião, do estilo ou do momento de vida —, explica a especialista.

O cabelo que liberta, no entanto, também é fruto de opressão. Cortar os fios era trunfo em guerras e, ainda no século passado, uma violência física e simbólica institucionalizada. Recentemente, o padrão estético se tornou o meio primário para cerceá-lo. Tão representativas na história, as madeixas merecem ser estudadas — e cuidadas — com afinco.

Mulheres com diferentes curvaturas de cabelo, representando a diversidade

Cabelo e sexualidade

A imagem da mulher sedutora acompanha, em geral, madeixas longas, lisas e esvoaçantes. A feminilidade está entrelaçada aos fios e as exigências são extensas. Não à toa, o cabelo forma uma peça-chave quando o assunto é sexualidade no ambiente social — o que implica diretamente em restrições.

“Historicamente, as mulheres sofrem mais limitações do que os homens, pois, dependendo da época ou do lugar, foram vistas como perigosas. Era necessário guardá-las, vigiá-las. Seu corpo, sua cabeça, sua mente, seu comportamento, sua sexualidade, tudo tinha que ser controlado”, explica Marlene Neves Strey, psicóloga, com mestrado em Psicologia Social e da Personalidade e doutorado no Departamento de Psicologia Social da Universidad Autónoma de Madrid, na Espanha. É professora do Mestrado Acadêmico em Psicologia da Universidade Feevale, onde pesquisa as áreas de gênero e estudos feministas.

Um exemplo prático, para Marlene, está no comprimento. “É muito difícil encontrarmos uma época em que ter cabelos bem curtos era não só permitido, como considerado bonito.” Nas mulheres, os fios representam sexualidade e fertilidade em diversas sociedades. De um lado, o padrão estético reafirma esse comportamento e, de outro, diferentes religiões criam normas. A partir de então, o cabelo feminino foi coberto com véus, hijabs e burcas e, em alguns casos, governos autoritários tornavam a prática uma lei, retirando o direito de escolha.

Marlene Neves Strey, psicóloga, com mestrado em Psicologia Social e da Personalidade e doutorado no Departamento de Psicologia Social da Universidad Autónoma de Madrid

Tosquia

Ao expressar feminilidade, os fios também se tornam uma arma. Há 80 anos, em 1944, um esposo-traído que retornava à França pós-guerra foi absolvido após tosquiar o cabelo da esposa. Para o tribunal, a atitude era coerente, dado o fato de que a mulher havia mantido relacionamentos extraconjugais enquanto o marido estava fora.

Naquele mesmo ano, outras 20 mil mulheres enfrentaram situações semelhantes. Este é o número estimado por Fabrice Virgili, historiador e escritor do livro La France “virile”: Des femmes tondues à la Libération — que narra o episódio que marcou o capítulo pós-guerra.

Mulheres tosquiadas na Libertação, place des Halles, 1944 (36 FI 2663) © Archives des Deux-Sèvres

Às mulheres, a retirada do cabelo foi usada para afirmar a ‘reapropriação’ do corpo das francesas, indica o historiador. Após a Segunda Guerra, aquelas que haviam se relacionado com oficiais nazistas foram expostas em praça pública e tiveram as cabeças raspadas. Os motivos envolviam relações amorosas e vínculos econômicos ou de trabalho, por exemplo.

O momento ficou marcado na história do país como um episódio de vingança popular. A violência — simbólica e física — é interpretada atualmente como fruto da ‘virilidade redescoberta de franceses’. Simbolicamente, aquela era a ocasião em que recuperavam o controle sobre o corpo feminino, analisa o Archives Départementales et Patrimoine du Cher, departamento francês do distrito de Cher.

Forte como Sansão

“Nem sempre cabelo curto é coisa de homem. Podemos lembrar do personagem bíblico Sansão, cuja força física era devida à sua longa cabeleira. Ou os vikings, os reis franceses, os nobres ingleses, os hippies e assim por diante”, sintetiza Marlene.

Se nas mulheres a representação é de fertilidade, nos homens, por outro lado, remete à virilidade, força e rebeldia. Os fios estiveram em disputa em guerras e eram trunfos a serem conquistados. Cabeças raspadas eram o símbolo de que os povos haviam sido derrotados e ‘levar o cabelo adversário’ para casa era um sinal de vitória. Mais recentemente, um homem ‘sem tempo a perder’, surge com fios curtos e usa pomada para fixá-los com exatidão. O século 20 reforça a ideia ocidental de civilidade através do novo estilo.

Em dissonância

Ainda que distintas, a grande maioria das culturas reproduz um aspecto: estar em dissonância com o padrão estético causa problemas. O ideal de beleza construído e imposto tenta apagar diferenças e, por isso, quem caminha no sentido contrário pode sofrer preconceitos.

“Raramente somos exatamente aquilo que a cultura exige de nós. Nossas experiências e relações com o mundo ressoam diferentemente em cada uma de nós. Se a cultura aceita razoavelmente as divergências, os problemas serão minimizados. Caso contrário, teremos preconceito, discriminação e até perseguição”, explica.

Surgem, então, tentativas de imposição. É preciso alisar, definir, cortar, crescer e outra infinidade de verbos dita as exigências reproduzidas da mídia às conversas de salão. Historicamente, as “dissonâncias” com o padrão estético resultaram em perseguição a diferentes povos e preconceito.

Raízes preconceituosas

Implicações racistas relacionadas à estética ditavam, durante o período escravocrata, as atividades. Para pessoas negras retintas escravizadas e de fios mais crespos, o trabalho era braçal, nas plantações. Para aqueles de tom claro e cabelos próximos à curvatura lisa, o destino era a casa.

À época, expressões pessoais eram reprimidas. “O que fizeram com os escravizados foi justamente tentar matar qualquer tipo de identidade que eles pudessem ter”, sintetiza a professora Fernanda. Hoje, a herança histórica está presente em falas racistas e o cabelo cacheado ou crespo é alvo de termos pejorativos. “Isso ainda é um resquício dessa barbárie que fizeram com os povos africanos”, finaliza.

Fernanda Bertim, professora de estética e mestre em Diversidade Cultural e Inclusão Social

“Quanto menos ‘trunfos sociais’ tivermos, mais consequências sofreremos se o nosso jeito de ser não for bem aceito pela maioria. As chances de aceitação para pobres e não-brancos costumam ser muito menores em uma sociedade capitalista, machista e preconceituosa”, complementa Marlene.

Hora do retoque

É melhor que sejam tingidos — “para aparentar menos idade” —, mas até podem ser grisalhos, desde que sejam cheios, brilhantes e com um bom corte. Jamais longos, indica o imaginário popular. Nem mesmo processos naturais escapam do padrão estético e o envelhecimento traz outra perspectiva aos fios: a cobrança, agora, é para não refletir a transformação natural que atinge a coloração e a estrutura capilar.

“Um dos valores mais buscados na contemporaneidade é a juventude, assim como a beleza. Essa é uma questão que atinge principalmente as mulheres que, por norma — não escrita em nenhum lugar, mas vigente — devem ser sempre jovens e lindas”, exemplifica Marlene.

O verbo “esconder” surge na conversa entre cabeleireiro e cliente, o “retoque da raiz” entra na agenda e as teorias sobre arrancar ou não os fios brancos se tornam discussão nos salões. A tintura, nesse caso, é a materialização da negação da idade. Movimentos buscam contrapor estas imposições e reforçar a importância da escolha, seja por tingir ou não, mas olhares tortos ainda perseguem quem assume o cabelo grisalho.

Mulher branca com cabelo longo, liso e grisalho

Um processo de aceitação

O cabelo representa ideais e liberta, mas também aprisiona. Ao longo dos séculos, o padrão estético ditou texturas, comprimentos e penteados e os marcou como bonitos ou feios. A influência — fruto
de conceitos racistas e machistas — excluía a possibilidade de fios ondulados, cacheados e crespos e
fomentava procedimentos invasivos, dolorosos e que prejudicavam a saúde.

Mudar de perspectiva não é uma tarefa fácil, mas recompensa. É isso que Alessandra Carelli Feminella, especialista na curvatura e proprietária do Studio dos Cachos, defende. “Atualmente, minha relação com o cabelo cacheado é de profunda conexão e respeito. No início, tive dificuldade em aceitar e cuidar dos meus cachos”, conta. “Com o tempo, fui entendendo que ele é uma extensão da minha
identidade, algo único que me diferencia e me empodera.”

Dizer sim à curvatura natural passa por um processo normalmente longo, que ganha o nome
de transição capilar. “Foi um período desafiador, em que enfrentei muitas dúvidas e inseguranças. No início, eu ainda me via presa aos padrões de beleza impostos, tentando lutar contra a naturalidade dos meus fios”, relata Alessandra.

A indicação da profissional é fortalecer a consciência e a autoestima. “É crucial entender que o preconceito em relação aos cabelos cacheados ou crespos é uma construção social e não reflete a verdade sobre sua beleza ou valor. Outro ponto importante é criar referências positivas. Buscar inspiração em pessoas que abraçam seus fios naturais e se sentir parte de uma comunidade ajuda muito nesse processo de ressignificação. A educação também é fundamental — quanto mais você entende e conhece, mais aprende a valorizá-lo”, comenta.

Alessandra Carelli Feminella, especialista na curvatura e proprietária do Studio dos Cachos

Olá, cachos

A primeira dica, segundo Alessandra, é ter paciência e determinação. “O apoio emocional e a troca de experiências com outras pessoas fazem toda a diferença. Transição capilar é uma jornada de descoberta de dentro para fora”, enfatiza. Na prática, então, a profissional explica que no processo de reencontro com os cachos é importante investir em tratamentos de fortalecimento. Alessandra recomenda usar produtos que sejam livres de sulfatos, parabenos e silicones, ingredientes que podem prejudicar a saúde dos fios em transição.

O momento ideal do big chop — corte que dá adeus às madeixas com química alisante — é uma escolha pessoal, mas determinante no processo. “Foi uma verdadeira ruptura com o passado e uma celebração do meu cabelo natural”, relata. A sugestão, então, é encontrar um especialista capaz de elaborar um plano de cuidados para os cachos que surgirão. “O big chop é uma decisão importante e precisa acontecer no momento certo para cada um. Eu sempre recomendo que a pessoa esteja emocionalmente preparada, pois essa mudança pode ser um choque inicial”, finaliza. A reconexão com os fios naturais é um processo longo e, por vezes, doloroso. O reencontro, no entanto, reconecta às origens e recompensa.

Mulher negra com cabelo crespo e volumoso, com texturas mistas

E para onde vamos?

Cerca de 2.300 anos separam o penteado de gel de uma múmia encontrada na Irlanda com o momento atual. À época, o jovem de 20 e poucos anos elaborou um moicano alto, com auxílio de óleo vegetal e resina de pinheiro, conforme indicam estudos feitos em 2003. Aquele era um dos primeiros registros
que indicavam: o cabelo sempre importou.

De lá para cá, então, os produtos se tornaram mais complexos, novos ingredientes surgiram às fórmulas e as crenças mudaram. As definições do que é belo ou não mudam e precisam ser reincorporadas — e questionadas — cada vez mais rápido. Se (re)encontrar nesse processo engloba não só compreendê-las, mas conseguir desconectar do ambiente para conectar consigo.

Gostou desta matéria? Compartilhe!
Categorias Beleza
Matérias Relacionadas